domingo, 29 de maio de 2011

Resumo do prólogo de J. P. Netto sobre "Para a questão judaica"




Por: Albani de Barros


        A primeira do século XIX na Alemanha, é marcada por uma situação econômica, social e política que Netto (2009) descreve  como sendo a “miséria alemã”. Alguns aspectos caracterizavam essa situação, além da pobreza material que assolava intensamente a massa da população, o incipiente desenvolvimento das forças produtivas; caracterizado pela baixa industrialização do país, principalmente se comparado com Inglaterra e França; o perfil econômico ainda essencialmente rural e a incapacidade da burguesia alemã de se colocar em posição hegemônica naquele momento histórico, eram os aspectos que assinalavam a “miséria alemã”. Contudo, tal qual Netto descreve, o aspecto mais profundo e íntimo dessa situação “era o atraso das suas instituições sociopolíticas” (2009, p. 10).
            Nesse quadro, a questão da religião era tomada como um dos aspectos nodais do debate filosófico da Alemanha de então, visto que o Estado prussiano ainda mantinha restrições para os judeus, se caracterizando como um Estado não laico, guardando ainda típicos traços do período feudal.
            Do ponto de vista político na Alemanha, o reinado de Frederico Guilherme III, demonstrava um forte interesse na manutenção da ordem feudal e na defesa dos interesses ligados a velha ordem, inclusive com repressão “as tendências democratizantes e liberais e combatendo os projetos que apontavam para uma Alemanha unificada sob bases constitucionais” (Ibidem, p. 11). A condução das instituições sociopolíticas na Alemanha seguia num caminho de oposição e bloqueio aos processos revolucionários típicos de matriz burguesa, ocorridos na Inglaterra e principalmente na França. O fato é que, se o Estado alemão colocava obstáculos a realização dos interesses burgueses, a burguesia alemã também se mostrava incompetente para impor sua vontade e realizar seus interesses. A oposição de Frederico Guilherme aos avanços constitucionais ganhara força na medida em que a burguesia alemã era ineficiente na condução de seu projeto político.

A oposição intelectual: a esquerda hegeliana.

            A oposição ao regime político alemão não encontrava ressonância entre o proletariado, visto que esse ainda era um grupo incipiente em razão da revolução industrial na Alemanha não ter avançado tão firmemente tal qual ocorrera na França e mais ainda na Inglaterra. Já a burguesia prussiana, como já relatada, demonstrava uma enorme incapacidade de enfrentamento às forças da velha ordem. Dessa forma, a crítica a esse regime prussiano comandao por Frderico Guilherme  não fora efetivada nem pelo movimento operário, nem pela burguesia, entre os anos de 1830 e 1840, tal crítica foi conduzida pela jovem intelectualidade alemã (NETTO, 2009).
            Netto (Ibidem) comenta de forma pertinente que a “miséria alemã” não impediu que ocorresse “um extraordinário acúmulo intelectual e filosófico e literário” (Ibidem, p. 13), entre os seculos XVIII e XIX, expressos em diversos expoentes intelectuais de origem alemã, dos quais podemos mencionar Kant, Goethe, Schiller e Hegel, apenas para citar alguns.
            Entre esses expoentes teóricos, são as concepções hegelianas aquelas que irão influenciar o pensamento da jovem intelectualidade que fará a crítica a condução política da Alemanha ao final da primeira metade do século XIX, é a chamada esquerda hegeliana. É bem verdade que tais concepções não tinham uma unidade homogênea, Engels relata que: “O conjunto da doutrina de Hegel dava bastante margem [...] a que nela se abrigassem as mais diversas idéias partidárias práticas” (ENGELS, apud NETTO, 2009, p. 13).
            Conforme esclarece Netto (2009),  a cisão fundamental ocorria em razão de uma dualidade na interpretação das idéias de Hegel. De um lado, uma corrente de intelectuais compreendia o sistema hegeliano pela aceitação do Estado como o elemento racional e universal, representando o fim da história, estes eram tidos como a direita hegeliana. Do outro lado, aqueles que também partindo das teses de Hegel, principalmente de seu método, compreendiam que o movimento da história não teria fim com o Estado, esses seriam chamados de a esquerda hegeliana.
            Os jovens hegelianos fizeram sua critica a “miséria alemã”, e inicialmente incorporaram um discurso liberal as suas teorias, entre esses intelectuais, está Arnold Ruge, ao qual Marx fará uma dura crítica no final da década de 1840 no seu texto “Glosas Críticas”. Contudo, o principal expoente da intelectualidade jovem alemã na década de 1830 e inicio da década seguinte será Bruno Bauer. O próprio Marx fará uma aproximação com Bauer, que ocorre, conforme relata Netto (2009), no inverno de 1838-1839, estabelecendo com Bauer laços de amizade e principalmente respeito, contudo, tal qual poderemos ver, também de crítica as suas idéias.

Os caminhos de Bauer

            Bauer era professor de teologia na Universidade de Berlin, na qual Hegel chegou a ser reitor até 1831, ano em que morre vítima de cólera. Na interpretação de Bauer feira por Cornu, este entendia que: “A ação atual da crítica deveria orientar-se, de acordo com Bauer, para libertar o espírito  e sua encarnação mais elevada, o Estado, do poder da religião” (CORNU, apud NETTO, p. 16). Na concepção liberal de Bauer, o Estado não laico, era um problema a ser enfrentado. De certa forma, tal convicção expressava também os limites e as ilusões do pensamento liberal, que apostava na emancipação política.
            Foi com esse espírito ilusionista que Bauer saudara a chegada ao poder de Frederico Guilherme IV em 1840, tendo a expectativa que o novo monarca redirecionasse o poder estatal prussiano diferente de seu antecessor. Contudo, na prática, a chagada de Frederico Guilherme IV não alterou o conteúdo limitador da nova ordem imposto pelomonarca que o antecedera. No tocante aos seguidores de Hegel, o novo monarca os perseguiu, excluindo vários deles dos círculos acadêmicos, inclusive o próprio Bauer (NETTO, 2009).
            Bauer continuou com sua crítica a religião, sempre nos limites da crítica política, deslocando para posições cada vez mais radicalmente liberais. Netto acrescenta que “Bauer vai deslizar progressivamente para um criticismo abstrato, formulado num radicalismo verbal que apenas dissimulava o crescente isolamento do autor em face ao movimento social real” (Ibidem,  p. 180. Em seu texto a Questão judaica, Marx (2009) fará uma crítica as ideias de Bauer em seu período de caráter mais liberal datados entre os anos de 1840 e 1842.

Marx: um democrata radical em trânsito para o comunismo

Marx obtém seu título de doutor em filosofia em Abril de 1841, na Universidade de Jena na Alemanha, conforme Netto (2009), há estudiosos da trajetória teórica de Marx que sugerem influencias de Bauer  na dissertação final de Marx. Inicialmente Marx vai ensinar na Universidade Berlim, espaço em que lecionavam diversos outros jovens hegelianos de sua época, entretanto, a ação do novo monarca Frederico Guilherme IV impede que a trajetória acadêmica de Marx seja prolongada, com nomeação de um antigo inimigo teórico de Hegel em cargo de comando na Universidade de Berlim, vindo essa situação a culminar com a demissão de inúmeros hegelianos, inclusive o próprio Marx.
Na impossibilidade de seguir lecionando em Berlim, Marx ingressa no jornalismo em 1842 (Ibidem), fazendo parte de um jornal da Renania, financiado pela burguesia e chamado Gazeta Renana, no qual em breve assumiria o posto de chefe editorial, sua missão era realizar um dura crítica ao governo de Frederico Guilherme IV. Quanto a esse respeito, Marx será competente em realizar essa crítica, entretanto, um acordo entre a burguesia e o rei fazem a verba para o custeio do jornal desaparecer e Marx deixar o periódico (Ibidem).
De acordo com Netto (Ibidem), é nessa experiência jornalística que Marx tem sua primeira experiência política. Ainda que o entendimento teórico da questão do Estado não esteja completamente nítido e esclarecido, Marx já entende o jogo de interesses existente entre a burguesia e poder político, bem como percebe a ilusão de neutralidade do Estado perante as classes, além disso, também compreende o equívoco de Hegel ao defender o Estado como uma esfera de realização universal. Também verifica “a covardia da burguesia liberal, que prefere os conchavos à luta conseqüente pelos seus proclamados ideais de liberalismo” (Ibidem, p. 19).
Tal qual Netto (Ibidem) destaca, essa experiência jornalística de Marx no inicio da década de 1840 trata-se um momento importante para a transição do jovem Marx, radicalmente democrata, para o caminho ao comunismo, ainda que o contato com o movimento propriamente comunista venha a ocorrer somente algum tempo depois quando de sua estadia em Paris.
Conforme Netto esclarece:

Marx compreendeu os limites do liberalismo burguês. [...] Fica claro para Marx, que o horizonte da filosofia hegeliana não dava conta dos problemas histórico-concretos da contemporaneidade – seria necessário is além da filosofia para intervir ativamente na realidade social (2009, p. 19-20).

Além desse aspecto vivido por percebido por Marx em razão dos fatos acontecidos durante sua breve passagem na Gazeta Renana, há também um outro aspecto simultâneo a experiência jornalística, que ocorre na sua trajetória intelectual, que foi a  aproximação com as ideias de Ludwig Feuerbach  e do pensamento de Moses Hess, que trabalhou com Marx no mesmo jornal (Ibidem). De Feuerbach vinha uma forte crítica as teorias de Hegel, corroborando para a passagem de Marx ao materialismo. Quando a Hess, o legado deste para a Marx foram a preocupação e o interesse de Hess pelos movimentos anticapitalistas.
Sem o emprego no Jornal, Marx deixa a Alemanha em direção a França, com o interesse de lá se associar a Arnold Ruge num periódico que expressaria a “reflexão filosófica alemã ao pensamento social francês” (NETTO, 2009, p. 20). Antes de partir Marx se casa e passa cerca de três meses em Kreuznack, momento em que Netto considera fundamental na sua trajetória intelectual. É nesse período que Marx reflete sobre sua experiência no jornal renano e dedica boa parte o tempo a estudar as obras políticas da modernidade, desde Maquiavel, passando por Montesquieu e Rousseau, além de estudos sobre a Revolução Francesa. É a partir de então que Marx consolida sua crítica a Hegel, principalmente na teoria hegeliana do Estado.
De acordo com Netto, é nesse período “que Marx elabora Para a questão Judaica” (Ibidem, p. 21). Nesse texto Marx crítica duramente com, a liberalismo existente entre os jovens hegelianos, em especial Bauer. É bem verdade que essa recusa ao liberalismo não era ainda uma afirmação completa de sua perspectiva revolucionária proletária. No tocante a recusa das ideias de Bauer, Marx aponta suas debilidades, “critica seus fundamentos e sua posição – mas o faz com respeito e assinala os seus méritos” (Ibidem, p. 21-22).

Bauer e Marx: duas abordagens à “questão judaica”.

O Estado não laico na Alemanha da primeira década do século XIX vedava aos judeus o exercício de direitos civis e políticos, a conquista dos direitos civis dos judeus ganha importância no debate prussiano, tornando-se uma reivindicação efetuada pelos liberais da época (NETTO, 2009).
Entre os que analisavam a situação dos judeus estava Bauer, no qual entendia que um Estado cristão como o prussiano, impedia a emancipação dos judeus, conforme Netto esclarece sobre o pensamento de Bauer “num Estado cristão ninguém está emancipado” (Ibidem, p. 22). No entendimento de Bauer, a reivindicação dos judeus de emancipação não faz sentido, pois tal solicitação é incompatível com um Estado cristão. Conforme Netto, a desqualificação de Bauer à proposta dos judeus avança ainda mais na medida em que considera a religião cristã de caráter universal, se contrapondo ao judaísmo, de caráter mais particular. Dessa forma, estaria o judeu “menos habilitado à emancipação que o cristão” (Ibidem, p. 23).
Conforme esclarece Netto, esse tratamento dado a questão judaica por Bauer é principalmente de caráter religioso, entendendo que a emancipação política está condicionada a emancipação religiosa, sendo assim, cristãos e judeus teriam que abrir mão de sua religião para alcançar a emancipação política, pois nem cristão e muito menos judeus poderiam realizar a emancipação política, em razão dos entraves que a religião provocava.
Marx não concordava com Bauer, para ele, a existência de um Estado laico, não significava a emancipação dos homens da religião, também não considera que a renúncia dos judeus à sua religião é um fundamento indispensável para a emancipação política. Os homens podem emancipar politicamente sem abdicar da religião, contudo, adverte Marx que essa emancipação política, não sendo a emancipação humana, não torna esses homens efetivamente livres (Ibidem).
Marx em Para a questão judaica, não tinha ainda um esboço de sua perspectiva revolucionária, portanto, de uma nova ordem societária radicalmente diferente da sociedade burguesa. Entretanto, ao assinalar os limites da emancipação política, sem no entanto, desconsiderar seus avanços, faz uma crítica a burguesia que tinha conduzido a sociedade para emancipação política, algo avançado em relação a velha ordem, porém pouco e rigorosamente insuficiente se considerar a necessidade de emancipar o homem plenamente.

NETTO, José Paulo. Prólogo, in MARX, Karl. Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

Nenhum comentário:

Postar um comentário